Onde andará Teodora Vittarelli?
Gnomos, mais ligações perigosas, uma pintora desaparecida, Max Stirner, etc.
1.
Há umas semanas, tive a sensação de estar enxergando pelas frestas.
É que de repente numa quarta ou quinta comum percebi que vislumbrava de soslaio um elemental caminhando sobre uma berinjela no hortifrúti de um supermercado.
Não era “parecido com”; simplesmente era. Um ser pequeno, de marcha ritmada, que identifiquei com uma convicção críptica. Não havia qualquer partícula de lembrança concreta; eu só sabia que era. Não posso dizer de onde tirei tal certeza, mas se tratava de certeza circular, inevitável, insuspeita. Algo que me fazia agarrar em uma estrutura secreta da própria experiência, da própria realidade.
Um elemental, pensei, muito provavelmente um gnomo.
Para o mago tcheco Franz Bardon, os elementais são seres conscientes cuja existência não apenas habita, mas é condicionada pelos quatro elementos — fogo, ar, água e terra. Eles não estão “em” tais elementos como um pássaro está numa árvore, mas brotam deles. Assim, eles estão imbricados ao elemento de tal forma que não é possível concebê-los fora dele — assim como não se concebe uma onda fora do mar ou fumaça fora de uma brasa. É como Éliphas Lévi, ocultista francês do século XIX, por sua vez, os definiria, isto é, como espíritos não emancipados, presos aos elementos. Em outras palavras, eles são expressões conscientes e vivas dos próprios estados primordiais da natureza.
Bardon não os entende como figuras da imaginação popular ou criações poéticas herdadas do folclore. Ao contrário: os elementais são, para ele, entidades reais, com existência objetiva nos planos sutis — planos tão concretos quanto os visíveis, ainda que perceptíveis apenas sob determinadas condições da consciência. O folclore, neste caso, seria apenas uma tradução simbólica, coletiva e tardia de experiências esparsas com tais presenças. Um resíduo narrativo. Ainda, segundo ele, tais entidades podem ser contatadas por meio de práticas mágicas específicas.
Por isso, o que chamamos de “gnomo”, “salamandra”, “ondina” ou “silfo” não são certamente seus nomes corretos, apenas aproximações de um fenômeno mais antigo, que precede a palavra e o símbolo, mas que as tradições ocultistas europeias tentaram circunscrevê-los em suas taxonomias. Nas cosmogonias brasileiras, por exemplo, poderíamos recorrer uma porção infindável de criaturas que certamente possuem uma natureza parecida: dos encantados da Jurema Sagrada aos xapiripë dos Yanomami, passando pelo Curupira e o Saci-Pererê.
Para a tradição de Franz Bardon e Éliphas Lévi, que remete ao alquimista alemão Paracelso, os gnomos (ou pigmeus) são os espíritos da terra, e estão associados a estabilidade, estrutura, matéria, minerais e aos segredos ocultos do mundo subterrâneo, e, quem sabe, à berinjela.
Originária da Índia, cultivada há milhares de anos, a própria palavra “berinjela” deriva do sânscrito vātiṅgaṇa, que passou ao persa como bādingān, depois ao árabe al-bāḏinjān, e chegou ao português através do espanhol antigo. Ao longo dos séculos, a planta foi domesticada no Extremo Oriente, especialmente na China, foi moldada por cruzamentos seletivos que suavizaram seu amargor e ampliaram seus frutos, tornando-a mais palatável ao gosto humano. Ainda assim, até o século IX, pairavam suspeitas sobre seus efeitos. Médicos muçulmanos a consideravam nociva: Ibn Sina, o Avicena, acreditava que induzia à melancolia; Abu Bakr al-Razi, por sua vez, temia que inflamasse o sangue.
Voltando aos elementais: acredita-se, portanto, que para que os gnomos se manifestem, é necessário que o mago carregue o espaço com o elemento correspondente (no caso, a Terra) até que o ambiente se torne não apenas simbólico, mas vibracionalmente saturado. Segundo Franz Bardon, é preciso chegar a uma atmosfera impregnada da terra viva, simbolizada por luz marrom ou amarela, objetos minerais, com energia densa e estável.
Agora pense em um ambiente abarrotado com matéria vegetal recém-retirada do solo, um microcosmo de cheiros terrosos, texturas úmidas, fibras, sementes, frutos, folhas. Mesmo sob iluminação artificial e uma organização comercial, é possível que um setor de hortifrúti concentre o excesso vibracional do elemento Terra necessário para a invocação de um gnomo.
Mas veja bem: Franz Bardon e Éliphas Lévi, cada qual à sua maneira, alertam para os riscos do contato com os elementais. Bardon adverte que, por sua semelhança com os humanos, os gnomos e seus semelhantes devem ser abordados com o mesmo cuidado que teríamos com estranhos. Considere, enfim, que eles têm vontades, intenções e não estão necessariamente interessados em colaborar com você.
E foi assim então, sem cautela ou preparo algum, que esbarrei naquele gnomo sobre a berinjela, no Peruzzo da Bento.
Ele caminhava com aquele balançar levemente cômico, como se o corpo pendesse ao ritmo de Bee Gees, mas em silêncio. Enquanto eu estava mergulhado num torpor translúcido do fim do dia, depois de horas arrastadas de home office, usando a mesma calça jeans havia cinco dias.
Coisas esquisitas já tinham acontecido naquele dia. A mais simplória: fui enviar uma mensagem pro meu chefe e o status do WhatsApp indicava que ele visto por último dez minutos depois do momento em que eu olhava praquilo.
Andando por aí em uma zona crepuscular entre o real e o delírio brando, não está exatamente cansado ao ponto de dormir, mas também não está desperto o suficiente para ser confiável, eu estava… no ponto. No ponto de ver aquele serzinho entre a baia das abobrinhas e a das cebolas roxas, perto dos gengibres, sobre berinjelas — algumas lustrosas, outras enrugadas.
Se quiser experimentar algo semelhante, minha sugestão é simples, ainda que não isenta de riscos. Entre no supermercado em silêncio, de preferência às 19h47, quando o ciclo da luz começa a falhar. Na mão esquerda, carregue uma vela marrom. Quando possível, oculte ela dentro de um saco de beterrabas. Na mão direita, esteja com um panfleto escrito “Você já ouviu falar em Veganismo Popular?” e, abaixo, o nome Ghob, um dos reis-gnomos, riscado com caneta esferográfica. Coloque-o entre o preço do chuchu e o da cenoura. No bolso, tenha sal grosso e três moedas anteriores ao Plano Real.
Caminhe em círculos pelo hortifrúti. Respire fundo. Espere que toque More Than a Woman. ■
2.
Os gnomos
São mais antigos que seu nome, que é grego, mas que os clássicos ignoraram, porque data do século XVI. Os etimologistas atribuem-no ao alquimista suíço Paracelso, em cujos livros aparece pela primeira vez.
São duendes da terra e das montanhas. A imaginação popular os vê como anões barbudos, de traços toscos e grotescos; usam roupas pardas ajustadas ao corpo e capuz monástico. Tal como os grifos da superstição helênica e oriental e os dragões germânicos, têm a missão de tomar conta de tesouros ocultos.
Gnosis, em grego, é “conhecimento”; tem-se conjecturado que Paracelso inventou a palavra “gnomo” porque eles conheciam e podiam revelar aos homens o exato lugar em que os metais estavam escondidos. ■
(O livro dos seres imaginários, Jorge Luis Borges)
3.
Era quinta-feira e eu tava tomando un mojito no Broa quando meu telefone tocou. Número desconhecido. Por algum motivo, não sei se rum ou tédio, decidi atender. Depois de alguns instantes, a voz nada trêmula, nada humana, disse: “Flávio, aqui é o Bradesco com uma oportunidade imperdível pra você! Temos condições especiais para a quitação da sua dívida com descontos de até 90%! Vá até a agência mais próxima e regularize sua situação”.
Descontos de até 90%. Como poderia existir algo assim? Imaginei que fosse um código. Uma senha. Alguma coisa que só eu devia entender. Olhei, então, pra folha do hortelã, como se ali houvesse alguma pista. “Flávio”. Pensei em outras vidas que eu talvez tenha vivido.
Foi quando lembrei.
Eu não era exatamente Flávio no começo. Era apenas alguém tentando abrir uma conta digital. Talvez para receber um frila de cem ou duzentos reais, talvez para fugir da burocracia de outro banco. E ali, entre termos de uso, pop-ups, e “clique aqui para continuar”, eu aceitei um limite emergencial. Pequeno, quase simbólico. Coisa de quinhentos pilas. Mas o mês estava apertado. E o mojito, caro. Eu usei.
Depois veio o parcelamento da fatura. Depois, um seguro que foi ativado automaticamente. Depois, uma assinatura do Disney+ e outra da Folha de São Paulo, que eu cancelei, mas continuaram sendo cobradas. Depois, juros. Depois, os juros dos juros. Mas o banco não me cobrou com hostilidade, e agora eu, chamado Flávio, devia R$ 2.396.047,16 ao Bradesco.
Precisei trocar de nome durante uma viagem muito louca pela América Central, a bordo de uma Belina laranja fumegante. Ela ficou pra trás num ferro-velho em Panamá Viejo, assim como Flávio, que desapareceu logo depois de El Salvador, sem deixar rastros.
Mas esse nome ainda circula por aí, aceso em bancos de dados, vagando por planilhas esquecidas, preso em servidores no deserto de Nevada… Espere.
Foi então que pensei na bomba atômica.
Pensei: a explosão da bomba atômica em 16 de julho de 1945, em Los Alamos, um deserto do Novo México, nos Estados Unidos, não foi apenas um experimento científico. Foi um ritual. Uma operação mágico-simbólica de altíssimo grau, cujo objetivo era rasgar o tecido da realidade e inaugurar uma nova era. Não uma era política, tecnológica ou militar, mas uma era ontológica.
A partir daquele clarão, tudo o que compreendemos como tempo, narrativa, subjetividade e linguagem começou a se corroer por dentro.
No oitavo episódio da terceira temporada de Twin Peaks, ao som de Nine Inch Nails, a câmera de David Lynch entra na nuvem do cogumelo como se adentrasse o útero de um novo mundo — pense a explosão como A Árvore de Sephiroth da Cabala. Dentro dela, formas abstratas se desdobram até surgir uma esfera com o rosto de BOB, uma entidade do caos, nascida da violência absoluta.
E, assim, ele nos diz que é como se a explosão da bomba nunca tivesse terminado, como se ela reverberasse por aí em certas frequências.
Dito isso, para Paulo Arantes, a bomba atômica marca um ponto de ruptura na história moderna; um momento em que a técnica deixou de ser um meio e passou a encarnar o próprio fim. Depois da bomba, tornou-se impossível imaginar o futuro. A explosão em Hiroshima e Nagasaki não representou apenas o auge da destruição militar, mas revelou que o Ocidente, dentro de seu projeto iluminista e racional, havia concebido a máquina da própria autodestruição. Desde então, segundo ele, vivemos sob um presentismo paralisado: um tempo em que as formas políticas e culturais já não se organizam para realizar utopias, mas para administrar a catástrofe.
Corte para o dia o dia 13 de junho: Twin Peaks estreava no Mubi. Foi aí que me veio à cabeça uma notícia que li tempinho atrás: esse mesmo Mubi havia recebido um aporte de 100 milhões de dólares da Sequoia Capital. Nada de errado nisso. A menos que você cavasse.
No ano passado, a mesma Sequoia liderou uma rodada de 10 milhões para a Kela, uma startup de ciberinteligência fundada por veteranos do exército israelense, poucos dias após o ataque do Hamas e a ofensiva brutal em Gaza. Outros 60 milhões viriam depois.
Acontece que no mesmo 13 de junho Israel iniciava uma nova ofensiva, atingindo instalações nucleares iranianas em Natanz, Fordow, Arak e outros alvos militares. O ataque veio com o selo da “autodefesa preventiva”, já que o Irã, supostamente acumula cerca de 400 quilos de urânio enriquecido a 60%. Enquanto isso, Israel mantém seu próprio arsenal atômico — cerca de 90 ogivas nucleares baseadas em plutônio e plutônio suficiente para 100 a 200 armas — e expande ilegalmente assentamentos em território palestino ocupado.
Respirei fundo. Olhei para mi mojito. Fiquei observando o gelo derreter.
Talvez tudo esteja saindo de um mesmo lugar sombrio desde então. E agora, ainda por cima, com financiamento e streaming cult.
Masquei a folhinha de hortelã.
“Flávio”, pensei. Talvez tenha sido pra mim mesmo. ■
4.
Em certos inovadores aventureiros, como Paracelso, esboça-se uma terapêutica que pretende modificar diretamente o espírito. Para tratar dos estados melancólicos, ele não recorre a evacuantes da atrabílis, mas a “medicamentos que provocam o riso”, e se o riso assim suscitado é excessivo, o médico restabelecerá o equilíbrio ministrando “drogas que provoquem a tristeza”. Quem quer obter esses efeitos deve, evidentemente, convocar toda a força dos quintae essentiae. Eis a lista que Paracelso dá dos medicamentos “que fazem o humor alegre, que expulsam toda tristeza, que liberam da tristeza o entendimento e lhe permitem ir livremente para a frente”: aurum potabile, ambra acuata, cordiale grave, croci magisterium, manna maris, laetitia veneris. ■
(A tinta da melancolia, Jean Starobinski)
5.
Teodora Vittarelli vem do mesmo planeta que Ziggy Stardust, mas de um lado onde o sol não alcança. Eu a conheci em uma comunidade de anarquistas no Orkut chamada “Contra o Trabalho”, em 2008. Trocamos muitas mensagens naqueles primeiros meses. Ela já gostava de Bergman, Kiarostami e Anaïs Nin, autores que eu fingia conhecer melhor do que realmente conhecia. Eu mentia sobre filmes que nunca vi. Citava livros que folheei em livrarias. Tudo pra manter ela escrevendo sem parar. Porque quando Teodora dizia, o mundo parava de ser ordinário por alguns minutos. Quinze anos. E-mails espaçados como chuva no deserto. Ela falava de meditação tibetana enquanto eu tentava relaxar na BR-290. Anjos cabalísticos enquanto eu lidava com colegas de trabalho diabólicos. Ecologia radical enquanto eu jogava bituca no vaso do Bar do Velho Éder. Quando conheci Marina, me ocorreu que seria uma boa apresentar as duas, a incluindo em uma lista de e-mails chamada Pequod. Teodora mandou uma foto de um crânio sobre um rádio quebrado. Marina respondeu com um poema de Elizabeth Bishop. Foi como apresentar dois pedaços do que eu considerava mais precioso em mim. Acompanhei a passagem de Teodora pelas artes plásticas na Universidade Federal de Juiz de Fora através de fotos granuladas publicadas no Facebook e depois Instagram. Seu interesse crescente por memento mori parecia natural e óbvio. Quando ela lançou uma newsletter, senti ciúmes. Na época, ela escreveu no Pequod: “Não sei quem vai ler isso. Talvez ninguém. Talvez só vocês.” Eu não queria que o mundo a conhecesse como eu conhecia. Depois, ela se mudou para São Paulo. Vi alguma coisa sobre casas noturnas, noise metal, BDSM e pessoas não-binárias. Já não conseguia mais acompanhar. Foi então que ela sumiu. Não gradualmente, como costumam sumir as pessoas que conhecemos online, mas de uma vez, como se tivesse sido abduzida de volta para seu planeta de origem. ■
6.
Inventário de visões e/ou sonhos que tive recentemente (e por que a maconha, ao podar sonhos intensos, me desanima): Um caseiro fantasma observando o jardim de uma casa que não sei de quem era, mas tenho certeza que já estive lá no futuro; gatos fantasmas; um homem de chapéu e poncho negro me encarava à distância, esfregando as mãos no frio; Jorgeh Ramos interpretando um anarquista num musical chamado “Piaf, a vida de uma estrela da canção” e dizendo que estava ensaiando “O Homem que era quinta-feira”, de G. K. Chesterton; uma universidade labiríntica. E então: um sujeito sem clavícula que andava com um séquito que o cortavam até que seu torso começava a tomar forma de pirâmide. No centro das costas (ou do que antes eram costas), era esculpido o Olho de Hórus, em relevo, tridimensional. “Ele está funcionando como uma antena”, eu disse em voz alta, ali mesmo, no sonho. ■
7.
As únicas imagens conhecidas de Max Stirner, pseudônimo de Johann Kaspar Schmidt, são desenhos feitos por Friedrich Engels, seu contemporâneo e, posteriormente, seu crítico feroz.
Essas ilustrações são esboços a lápis desenhados por volta de 1842–1844, quando Engels e Stirner participavam dos círculos hegelianos jovens em Berlim. Os retratos foram encontrado entre os papéis de Engels e publicados posteriormente. Assim, se tornaram a única referência visual da aparência de Stiner.
A filosofia de Max Stirner gira em torno da ideia de que o indivíduo concreto, singular e irredutível está acima de qualquer ideia, moral ou instituição. Para ele, conceitos como Deus, Estado, Humanidade ou Verdade são “fantasmas” criados para subjugar o indivíduo, e devem ser descartados em nome de um egoísmo consciente, no qual cada pessoa reconhece e afirma sua própria vontade sem se curvar a ideais superiores.
Stirner propõe uma vida baseada na apropriação pessoal do mundo, onde as relações não são guiadas por dever, mas por acordos livres entre egoístas. ■
8.
bem, o príncipe da balança, ele caminha entre as estantes,
com seus livros empoeirados e verdades que não tocam o chão
ele pesa as palavras como prata, ouro, como chumbo,
e o vento seco do fim do mundo faz seu nariz sangrar.
do alto de sua pequena torre, pequena mas tão alta,
que toca as nuvens onde a chuva não existe mais,
ele lê Poe e Kafka na segunda, Pessoa e Whitman na terça
e na quarta já esqueceu o que leu na vida inteira.
as botas estão cobertas de poeira
e o seu anel de ferro já não pertence a ninguém
sua voz range feito trilho velho
e enquanto a cidade palpita, ele fecha os olhos
e escuta os segredos sussurrados de um outro tempo.
ontem ele era rei, amanhã será mendigo
hoje é apenas príncipe de um reino de apenas um amigo
e lá fora o mundo gira, gira, continua girando. ■